Arbitragem e crime, questões controvertidas

Passados 25 anos da lei que a regulamentou, a arbitragem é uma prática bem consolidada no Brasil, sendo crescente o número de empresas que optam por resolver seus conflitos em juízo arbitral. Em paralelo, o direito penal expandiu muito os seus limites, impactando o mundo corporativo por meio da lei anticorrupção, eficientes programas de compliance e sofisticadas investigações públicas e privadas. Como consequência, questões criminais se fazem presentes em procedimentos arbitrais, gerando dúvidas e reflexões.

O crime pode estar na própria causa objeto da arbitragem, o que ocorre quando uma das partes invoca corrupção ou fraude para invalidar a relação contratual. Extrapolando os limites naturais da arbitragem (direitos patrimoniais disponíveis), o árbitro se vê diante da difícil tarefa de julgar a ocorrência ou não de um crime.

O atual estágio da arbitragem brasileira recomenda atenção no trato de possíveis questões criminais

Alegações de corrupção na relação contratual demandam análise complexas e podem acabar no Judiciário. Na disputa Alexander Brothers versus Alstom, a multinacional francesa se recusou a pagar por serviços de consultoria alegando descumprimento de suas regras de compliance e indícios de corrupção na atuação da contratada. Após um tribunal arbitral na Suíça confirmar o pagamento da consultoria, a Alstom levou o caso para a Justiça francesa, que, em um primeiro julgamento, anulou a decisão arbitral. A disputa teve fim no ano passado, quando um recurso judicial restabeleceu o pagamento imposto na arbitragem,obrigando a empresa francesa a pagar por um serviço que ela própria definiu como corrupção.

O contrário aconteceu em um outro exemplo, decidido também em 2021, em que a Justiça francesa anulou uma decisão arbitral (Webcor versus Gabon), entendendo que o pagamento da lua de mel de um funcionário público interferiu em uma relação contratual. Os indícios de corrupção teriam surgido somente depois de concluída a arbitragem.

Para além da corrupção, a fraude também pode trazer o debate criminal para o processo arbitral. Recentemente, a lei brasileira passou a considerar o estelionato como um crime de ação penal condicionada à representação do ofendido, ou seja, a vítima da fraude pode decidir se o fraudador será processado criminalmente. A decisão deve ocorrer dentro do prazo de seis meses, contados da data da ciência da autoria delitiva, sob pena da extinção da punibilidade. No decorrer do processo arbitral, a vítima deve se manter atenta, pois esse prazo pode ser iniciado pela revelação de provas que indiquem a autoria da fraude.

Ainda que o contrato em si não seja fruto de corrupção ou fraude, possíveis crimes podem surgir ao longo da arbitragem por meio de atos ilícitos praticados pelas partes ou por aqueles chamados a intervir na causa. Os crimes de um procedimento arbitral são praticamente os mesmos de um processo judicial, como o falso testemunho, a falsa perícia, o uso de documento falso, dentre outros.

E ao se deparar com indícios de crime, o árbitro tem o dever legal de comunicar o Ministério Público? Ao contrário de um magistrado, o árbitro não é obrigado a comunicar crimes de que tenha conhecimento. Os juízes togados, integrantes do Poder Judiciário, possuem a obrigação de comunicar crime, mas essa obrigação advém de uma regra processual, prevista no artigo 40 do Código de Processo Penal. Ocorre que o árbitro não está sujeito a obedecer a lei processual penal. É equiparado a um funcionário público somente para os efeitos da legislação penal, o que equivale a dizer que pode responder pelos mesmos crimes que um juiz no exercício do cargo, como a corrupção passiva.

Diante da ausência de obrigação legal expressa, entende-se que o árbitro pode se abster de comunicar um crime, amparando-se no dever de manter a confidencialidade usualmente imposta pela arbitragem. Mas para as partes que pretendam levar a arbitragem para análise do Poder Judiciário é bom ter em mente que o juiz, ao analisar um pedido de anulatória de processo arbitral, certamente irá comunicar o Ministério Público caso constate algum indício de crime.

Existem ainda questões criminais afetas ao próprio árbitro que, equiparado a funcionário público, pode incidir na prática de crimes como corrupção, violação de sigilo funcional ou prevaricação. O dever de revelação do árbitro também pode causar impactos criminais, na hipótese de descumprimento doloso.

Aquele que assume o papel de árbitro possui a obrigação jurídica de revelar fatos que afetem sua imparcialidade e independência, sendo tal violação uma falta grave, capaz de anular a sentença arbitral. A quebra dolosa do dever de revelação pode configurar o crime de falsidade ideológica, delito que se consuma com a produção de um documento com omissão ou declaração falsa, com o objetivo de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

O atual estágio da arbitragem brasileira recomenda atenção no trato de possíveis questões criminais, cada vez mais presentes em litígios corporativos. O procedimento arbitral será beneficiado na maior medida em que câmaras e árbitros tenham suporte e critérios bem definidos para a correta identificação de indícios de crimes, assim como regras claras para eventual comunicação às autoridades ou manutenção da confidencialidade.

Rodrigo Dall’Acqua é advogado criminalista, sócio do Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra

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Acesso em 22.09.2022. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/09/09/arbitragem-e-crime-questoes-controvertidas.ghtml