A divergência como virtude

Por Celso Vilardi, José Luis Oliveira Lima e Márcio Thomaz Bastos

Como advogados, atuamos na ação penal 470 e temos, por óbvio, interesse no deslinde da causa. O nosso interesse, no entanto, não nos cega nem nos impede de perceber o que está ocorrendo.

Um julgamento que não permite a livre expressão da divergência simplesmente não é justo. A intolerância em relação a opiniões diferentes não honra a história do Supremo Tribunal Federal.

Tradicionalmente, o Supremo é o lugar onde a justiça se forma pelo contraponto das opiniões de ministros, que detêm notável saber jurídico. Causa-nos preocupação nova tentativa de cercear a troca de ideias.

Convém lembrar dois conceitos. Os embargos declaratórios, segundo consagrados professores da USP, com a evolução do processo penal brasileiro, deixaram de “constituir pedido de reconsideração, vindo a se transformar em verdadeiro recurso”. É pacífico que, conquanto não se prestem à rediscussão da causa (o que é reservado aos infringentes), podem alterar o mérito da decisão, desde que haja ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão.

O sistema é lógico: não é natural que haja um novo julgamento na análise dos declaratórios, mas também não se pode perpetuar uma contradição que gere um erro ou uma injustiça.

Se isso vale para qualquer tribunal, no Supremo é ainda mais grave porque a injustiça será literalmente perpetuada, já que alguns temas não serão rediscutidos, nem mesmo se admitidos os infringentes. O Supremo decide sobre a liberdade das pessoas em única e última instância.

Por outro lado, chicana, segundo o Aurélio, significa “tramoia; enredo em questões judiciais; ardil; sofisma; contestação capciosa”. É uma acusação grave, qualquer que seja o sentido empregado, máxime quando dirigida a um ministro.

Por isso, o incidente ocorrido na última sessão causou espanto. Não se tratou de mais um mero “bate-boca”. Ao examinar uma contradição, o ministro Ricardo Lewandowski foi atacado gratuita e injustamente apenas por exprimir uma opinião divergente sobre questão jurídica estritamente técnica.

E, logicamente, não se discute contradição sem analisar o que foi julgado. Não houve discussão nem “bate-boca”. Houve um excesso verbal, seguido de um pedido de retratação. No dia anterior, o alvo fora o ministro José Antonio Dias Toffoli.

A “lógica” é a seguinte: quem considera um argumento da defesa é chicaneiro, quer retardar o julgamento, eternizar a discussão e não quer fazer um trabalho sério, em flagrante desrespeito à Suprema Corte.

Se o raciocínio fosse válido, não existiria razão para a previsão legal desse recurso. Afinal, ele só pode ser analisado se houver condições para o debate. Caso contrário, o ponto de vista dos réus seria absolutamente irrelevante, o que não é compatível com um dos fundamentos da Constituição brasileira, o direito ao devido processo legal.

Quem quiser analisar serenamente a defesa, cumprindo seu papel de magistrado, não pode ser desqualificado como inimigo da sociedade. A liturgia republicana não comporta esse tipo de excesso.

O papel institucional da presidência é favorecer, não inibir, o diálogo. É garantir ao plenário condições de deliberar de maneira refletida e calma. Não impor uma posição pessoal, mas possibilitar que a maioria seja atingida, respeitada a divergência.

Um julgamento que procura eliminar o dissenso é injusto por excelência. A sociedade brasileira não pode concordar com a tentativa de calar um juiz, pois a democracia é, para nós, uma conquista definitiva.

Entre as instituições brasileiras, é no Supremo que historicamente se realizou com maior vigor a ideia de tolerância expressa na famosa advertência atribuída a Voltaire.

Pode-se não concordar com nada do que uma pessoa diz, mas deve-se defender até o último instante o direito fundamental que ela tem de exprimir livremente a sua opinião. No Estado democrático de Direito, ao menos, costuma ser assim.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 18/08/2013.