E no Brasil, vidas negras importam?

A diferença, gritante, reside na forma como cada sociedade reage.

A morte de George Floyd, em Minneapolis (EUA), é uma catástrofe. Não apenas por conta do absurdo da ação policial, de sufocar um homem já imobilizado até a morte, mas também pela realidade que ela escancara: quão enraizado o racismo está na sociedade norte-americana, apesar dos esforços de figuras como Rosa Parks e Martin Luther King Jr., cujas lutas nas décadas de 1950 e 1960 resultaram na promulgação da Lei dos Direitos Civis, que encerrava, ao menos no papel, um vergonhoso histórico segregacionista.

Olhar para o que ocorre hoje nos Estados Unidos nos leva a traçar um paralelo com nossa realidade. Afinal, não faltam evidências de que, tanto lá como cá, o racismo estrutural vitima milhares de vidas por ano. A diferença, gritante, reside na forma como cada sociedade reage.
Há mais de duas semanas acompanhamos, através de veículos de comunicação brasileiros e internacionais, manifestações realizadas em diversas cidades nos EUA e no mundo. Apesar de o crime contra George Floyd ter ocorrido no estado de Minnesota, milhares de pessoas continuam a marchar diariamente na Califórnia, Colorado, Nova York, Illinois, Texas e outros. A indignação é generalizada.

Por aqui, no último dia 18 de maio, João Pedro, menino de 14 anos, negro, morador do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), foi morto em uma operação policial enquanto brincava. A casa onde estava foi alvejada por mais de 70 disparos. Passado quase um mês, sua inaceitável morte é notícia antiga, objeto de uma ou outra matéria sobre o andamento das investigações.

À exclusão de manifestações do movimento negro, de raras entidades e de comunidades cariocas, não há indignação alguma. Não há cobertura midiática minimamente satisfatória de qualquer jornal ou emissora de expressão. Não há nada remotamente parecido com marchas a exigir o fim de uma política ultrajante de ataques sistemáticos, avalizados pelo Estado, contra grupos marginalizados. A verdade é que, além da família e amigos da comunidade de João Pedro, do movimento negro e de raras entidades, o resto do Brasil optou por não se indignar. E não é a primeira vez.

O fenômeno é curioso. Ao invés de os reiterados assassinatos de jovens negros causarem um sentimento de repulsa generalizada, o que se vê é uma sociedade acostumada, conformada, acomodada. Ágatha Felix, Kauê Ribeiro dos Santos, Kauã Rozário, Kauan Peixoto, Jenifer Cilene Gomes. Cada crime não passa de um acréscimo às estatísticas. E cada vez que ignoramos essas mortes, chancelamos a falência de nosso ideal de sociedade.

As razões para os diferentes posicionamentos entre americanos e brasileiros são múltiplas, perpassam diferentes processos de escravatura e abolição, a segregação legalizada aplicada nos Estados Unidos, o mito da democracia racial que, por muito tempo, invisibilizou o papel central da raça na construção e manutenção das desigualdades brasileiras e outros fatores que não nos compete tratar agora.

Mais importante do que esses comparativos é olhar para nosso próprio quintal. A história brasileira possui ótimos exemplos de resistência negra à violência imposta —Revolta dos Malês, Quilombo dos Palmares, balaiada— e, ainda nos dias atuais, o movimento negro reivindica equidade e justiça, apesar do silêncio da sociedade e da grande mídia.

A indignação e comoção seletiva nada mais são do que o reflexo de quais corpos, rostos e vozes nossa sociedade escolhe ouvir ou silenciar. Sempre é bom lembrar que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil.

O reconhecimento das estruturas que nos formam e que ainda hoje se refletem em privilégios e diferentes oportunidades, bem como na violência também seletiva e direcionada, deve partir de cada um e de todos nós.

A todos aqueles que reconhecem a humanidade em cada pessoa, é passada a hora de rever posturas e se colocar como responsável pela mudança: se posicione, leia, consuma e incentive profissionais negros.

A resposta à pergunta do título dependerá, para além de palavras, de nossas ações.

*José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista, membro do Instituto dos Advogados de São Paulo e do Conselho do Innocence Project Brasil

*Camila Torres Cesar, advogada, membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/06/e-no-brasil-vidas-negras-importam.shtml?origin=folha