E se fosse na Rocinha, no Complexo do Alemão ou em Paraisópolis?

É chegada a hora de reverter este quadro de incivilidade e bestialidade

José Luis Oliveira Lima
Advogado criminalista, é membro do Instituto dos Advogados (Iasp) e do Conselho Fiscal do Inoccence Project

Roberto Dias da Silva
Advogado e professor de direito da FGV-SP e da PUC-SP

Rodrigo Dall’Acqua
Advogado criminalista, é especialista em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Vamos imaginar a seguinte situação: um cidadão que reside em uma comunidade carente, na periferia de uma grande cidade brasileira, está em prisão domiciliar determinada por um juiz. Uma das condições para o benefício da domiciliar foi a de que o investigado não utilizasse as redes sociais; caso contrário, seria preso novamente.

A condição foi desrespeitada pelo cidadão, e o juiz, após tomar ciência disso, determina a prisão do investigado. Quando a polícia vai cumprir o mandado de prisão na comunidade, é recebida a tiros de fuzil e granada, ferindo os policiais. O que aconteceria com esse cidadão —que não é ex-deputado, ex-presidente de partido político e muito menos aliado do atual presidente da República— se tivesse esse comportamento? Com certeza teria a sua casa invadida e seria morto.

O que dizer do episódio envolvendo o desqualificado Roberto Jefferson? A interferência do presidente da República é chocante. Determinar que o ministro da Justiça compareça para interferir no cumprimento da prisão desse criminoso é assustador. Em qualquer país civilizado, o presidente da República e o seu ministro seriam cobrados pela sociedade para esclarecer esse comportamento. Mas infelizmente parece que nada acontece por aqui.

É importante que se diga que Roberto Jefferson não foi preso pelos absurdos que disse nas redes sociais, pela covardia de suas atitudes e pela abominável fala contra a ministra Cármen Lúcia. Trata-se de um homem realmente abjeto. Roberto Jefferson foi preso porque descumpriu uma decisão judicial, porque não respeitou as regras para usufruir de um benefício concedido pelo Poder Judiciário.

A cordialidade do tratamento que ele recebeu da Polícia Federal contrasta e muito com as frequentes notícias de violência e mortes praticadas pelos agentes de segurança contra a população carente e, geralmente, negra do Brasil.

Com isso, não estamos a exigir que Roberto Jefferson fosse morto pela polícia, mas que todos —sem exceção— fossem tratados conforme os protocolos de abordagens policiais em casos como este. Abordagens sem privilégios ou perseguições, com respeito aos direitos e garantias dos cidadãos. Nada mais do que a observância da impessoalidade, algo básico numa República.

O episódio parece ter deixado às claras os equívocos de políticas populistas na área de segurança. Ampliar de forma vertiginosa —como tem acontecido nestes anos de governo Bolsonaro— o acesso da população às armas, em vez de reduzir, gera mais e mais violência. Os policiais começam a sentir na pele. Reverter esse quadro será algo muito desafiador.

Some-se a isso o discurso que incita a fúria, a agressividade e o extermínio de pessoas ou grupos, e temos aí o caldo perfeito para a barbárie. O presidente da República é um exímio incentivador dessas atitudes. Basta lembrar uma de suas abomináveis frases: “A minha especialidade é matar“. Ou recordar o pedido para “fuzilar a petralhada“. Ou ainda a sugestão para que as pessoas que atrapalham o seu governo devessem ir para a ponta da praia, referindo-se a uma base da Marinha na restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro, onde ocorriam execuções de presos políticos durante a ditadura militar. Os exemplos poderiam se multiplicar aos montes, mas estes são suficientes para evidenciar a estreita relação entre as suas pregações e as atitudes de seus asseclas, como Roberto Jefferson.

Para não ligar uma coisa à outra, o presidente busca agora se desvencilhar do parceiro que quis fuzilar a polícia. Disse que sequer tem uma foto com ele! Mente e não cora.

É chegada a hora de reverter este quadro de incivilidade e bestialidade. Ainda veremos o tempo em que não precisaremos mais perguntar “e se fosse na Rocinha, no Complexo do Alemão ou Paraisópolis?”, pois a Constituição estará acima de todos.

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