As indústrias farmacêuticas vêm sendo alvo de diversas investigações criminais motivadas por comunicações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) requisitando que o Ministério Público apure a suposta prática de falsificação de remédios. Trata-se de acusação da prática de um crime gravíssimo, previsto no artigo 273 do Código Penal com pena de dez a quinze anos de prisão.
A população não precisa ficar alarmada, pois os medicamentos brasileiros não são fabricados por criminosos e seguem plenamente confiáveis. O problema decorre de uma interpretação equivocada da lei penal feita pela Anvisa. De fato, compreender o artigo 273 não é tarefa fácil. O dispositivo reúne dez condutas diferentes (alterar, vender, distribuir etc.), aplicáveis a vários tipos de produtos (medicamentos, cosméticos, saneantes etc.) quando verificáveis em diversas condições (sem registro, de procedência ignorada, falsificado etc.).
A Anvisa costuma tipificar os possíveis crimes das empresas farmacêuticas por meio dos incisos mais genéricos e abstratos, que punem a venda de medicamentos “sem as características de identidade e qualidade admitidas para sua comercialização” ou “com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade”. Valendo-se deste vago e amplo enquadramento, a comunicação de crime ocorre diante de pequenas irregularidades, comuns no processo industrial, como por exemplo uma divergência no rótulo ou por qualquer alteração não significativa no medicamento.
Assim, problemas corriqueiros e inofensivos, muitas vezes comunicados espontaneamente pela própria empresa, geram investigações criminais de um delito cuja pena é superior ao crime de estupro.
Essa interpretação, além de claramente inadequada, não atende ao propósito da lei. A atual redação do artigo 273 foi inserida no Código Penal no ano de 1998, diante de reportagens jornalísticas sobre a venda intencional de remédios falsificados, gerando a morte de pessoas que estavam em tratamento de doenças graves, como o câncer.
Diante da grande comoção social, os parlamentares, apoiados pelo então ministro da Saúde, José Serra, propuseram uma drástica mudança legislativa para punir fraudadores que vendiam medicamentos adulterados. Basta ler os arquivos do projeto de lei para perceber que a intenção era coibir a ação de “quadrilhas especializadas” e “organizações clandestinas” que lucravam “à custa da saúde e da vida de milhares de cidadãos brasileiros”. Portanto, as pesadas penas do crime não foram concebidas para punir laboratórios farmacêuticos que funcionam licitamente.
Os nossos tribunais seguem essa distinção de tratamento ao julgar fatos tipificados pelo artigo 273 do Código Penal. O Superior Tribunal de Justiça julga com extremo rigor casos em que a venda de medicamentos ocorre na clandestinidade. O comércio ilegal e oculto de remédios, sem nenhuma submissão às autoridades sanitárias, é considerado uma atividade grave por si só, dispensando a prova conclusiva de que o produto traficado era perigoso à saúde humana.
Por outro lado, o STJ possui posição diferente quando a venda de medicamentos não é clandestina. Nestes casos, entende-se que “é necessária a comprovação de alguma potencialidade lesiva à saúde pública”, conforme consta do julgado no Recurso Especial 1.590.310. Exige-se uma análise pericial do medicamento para atestar se a saúde humana está verdadeiramente em perigo — caso contrário, não há crime.
Felizmente, a jurisprudência obedece ao espírito da lei, criada para desmantelar “organizações clandestinas”, punindo apenas condutas graves, que efetivamente coloquem em risco o bem jurídico tutelado pela norma. Portanto, a Anvisa não deveria comunicar ao Ministério Público todo e qualquer desvio de qualidade, posto que os indícios de crime somente estão presentes quando o medicamento realmente estiver em condições tais que o classifiquem como danoso à saúde.
A indústria farmacêutica é regulada por severas regras de qualidade, administradas por profissionais sérios e altamente especializados. Ainda assim, mesmo com todo este rígido controle, eventuais falhas no processo produtivo dos medicamentos são inevitáveis. Criminalizar pequenas imperfeições, sem qualquer efeito negativo para a saúde humana, serve apenas para gerar constrangimento ilegal para os farmacêuticos e trabalho inútil para o nosso sobrecarregado sistema de justiça criminal.
José Luis Oliveira Lima é advogado criminalista, sócio do Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Foi presidente da Comissão de Prerrogativas e Direitos da OAB-SP.
Rodrigo Dall’Acqua é advogado criminalista, sócio do Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-27/opiniao-indevida-criminalizacao-industria-farmaceutica