Antirracismo de sofá

Para a sociedade, é um mal-estar que vai passar; mas, sem intervenção, não vai.

A morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, homem negro brutalmente assassinado após ser torturado com socos e sufocamento por seguranças em um Carrefour de Porto Alegre, é mais um exemplo de banalização da vida e, sobretudo, da morte negra.

O vídeo do crime evidencia a culpabilidade dos agentes de seguranças, que se sentiram à vontade para, na frente de câmaras e pessoas, torturarem e matarem mais um homem negro e pobre.

Em meio a análises do comportamento dos seguranças e da reincidência do grupo Carrefour em ações violentas contra consumidores, notamos que houve apresentação do registro criminal da vítima.

Inverteram-se as posições, a ponto de Alberto Freitas ser culpabilizado pela violência que sofreu porque “provocou”, porque “atacou” primeiro. Ou seja, a vítima se tornou o criminoso e os algozes, as vítimas.

Na obra “Memórias da Plantação: episódios do racismo cotidiano (2019)”, Grada Kilomba aponta que “no racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. Corpos brancos ao contrário, são construídos como próprios, são corpos que estão ‘no lugar’, ‘em casa’, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia”.

Por causa do racismo, negros são caracterizados como o inimigo a ser combatido, como criminosos e culpados, que devem ser condenados e executados sem direito à defesa. Aos que têm dúvidas, sugerimos comparar o que aconteceu com outra consumidora, esta branca, presa por injúria racial, lesão corporal e homofobia praticada contra funcionários e clientes de uma padaria na zona oeste de São Paulo.

Diante do comportamento filmado, reprovável e passível de punição legal, corretamente chamou-se a polícia; e a prisão em flagrante foi convertida em domiciliar. E pronto, a vida dela que segue. Casos como esses abalam pessoas negras coletivamente e deveriam afetar toda a sociedade. Em pleno Dia da Consciência Negra, 20 de novembro de 2020, em um dos anos em que mais se discutiu a questão racial, a comunidade negra mais uma vez foi levada a lutar e expressar, das mais variadas formas, que seguimos resistindo e reagindo.

Vimos pessoas brancas usando as redes para manifestar inconformismo. A mídia noticiou o caso de forma ampla, mas o interesse pelo tema parece arrefecer pouco a pouco.

A banalização das mortes negras tem dessas coisas: o tempo passa, as hashtags somem do feed e todos retomam suas atividades cotidianas. Seguem a vida, dizem que é triste, mas nada de novo.

No Brasil, a frase de Angela Davis, uma das mais replicadas nos últimos tempos —“não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”—, torna-se vazia em seu sentido, na medida em que o posicionamento de muitos se restringe a posts e mensagens.

Antirracismo pode até compreender palavras, mas não se sustenta sem ações. Romper com as estruturas não é cômodo, gera desconforto, mas é preço a ser pago por aqueles que reconhecem e entendem que o racismo não é um problema dos negros, e sim de todos. Aliás, raça é um conceito criado pela branquitude.

A violência praticada pelos seguranças do Carrefour é de responsabilidade de seus autores, do supermercado e da Vector Segurança Patrimonial, pois estes últimos não atuaram de forma efetiva, por meio de seus representantes e prestadores de serviço, para impedir a morte.

E se isso aconteceu é porque nunca houve treinamento para repressão da violência, da barbárie e das discriminações, mas também porque a inação dos antirracistas contribui para que a estrutura permaneça em seu devido lugar.

A empresa perdeu R$ 2 bilhões em valor de mercado, suas ações caíram na Bolsa de Valores, o que parece ter motivado a criação de um fundo de R$ 25 milhões para fomentar ações de combate ao racismo no Brasil. Embora a iniciativa seja positiva, o valor não atinge 10% dos R$ 487 milhões distribuídos a seus acionistas no ano e será recuperado. Pesquisas apontam que a diversidade é lucrativa.

Como um paciente que se recusa a ser medicado porque nega a doença, a sociedade brasileira permanece dizendo que racismo é um mal-estar que vai passar. Sem nossa intervenção, sabemos que não vai.

*José Luis Oliveira Lima
Advogado criminalista, é membro do Conselho do Innocence Project

*Camila Torres Cesar
Advogada, é membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em direito político e econômico (Mackenzie)

*Waleska Miguel Batista
Advogada, é doutoranda em direito político e econômico (Mackenzie)

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/12/antirracismo-de-sofa.shtml

José Luis Oliveira Lima